segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Minha outra mesma vida (consta do livro A Batalha dos Neurônios)

Trimrimrimrim... (toca o despertador). Calb de Labro levanta esbaforido e pra variar atrasado. Calb de Labro é nosso personagem. Homem normal, workaholic sim, mas esforçado acima de tudo, como ele próprio gosta de se intitular. Levanta-se, pulando da cama, nem se esticar pode. Sai correndo. Entra no banheiro. Liga o rádio que já está no banheiro, coloca numa rádio que só toca notícia. Faz suas necessidades. Escova os dentes. Toma banho, se enxuga, sai do banheiro, (antes aumenta o volume do rádio) corre coloca a indumentária de “homem sério”: calça social, camisa social de botão, terno, gravata, meia combinando com o sapato e o próprio sapato. Aumenta ainda mais o volume do rádio. Pronto está com sua armadura. Sai correndo!
Vai à cozinha. Esquenta água. Faz um café. Come um pão. Sempre ouvindo as notícias. Olha as contas. Pega e coloca na sua pasta de couro as contas de hoje, vê o que também tem que comprar. Sai de casa. Toca o botão do elevador. Reclama da demora, como se isso ajudasse em algo. Pega o elevador. Desce correndo as escadas da portaria que o levará a rua, mas antes, dá bom dia a Severiano, o porteiro.
Severiano é um porteiro nordestino que herdou esse nome por ter o pai Severino e a mãe Ana. Como nasceu cabra macho, é Severiano.
Calb, enfim, ganha a rua. Ao sair de casa, porém, algo do céu cai em sua cabeça. Calb cai no chão desacordado. Começa a sua “viagem”. Ele se vê em outra vida, deitado de bermuda numa praia, bem descansado e tranqüilo.
Levanta-se da areia e caminha até um coqueiro, sobe no coqueiro pega um coco e desce. Corre a um quiosque e pede um facão. Descasca o coco, abre-o e bebe seu líquido. Após a bebida hidratante, corta-o e come a carne do fruto. Joga o resto na lixeira. Corre pra água e mergulha de cabeça na imensidão azul, fica uns trinta segundo debaixo da água e retorna à superfície, mas antes tentou dar um impulso para saltar como os golfinhos. Claro! Não conseguiu.
Volta a se deitar na areia e a olhar o céu e refletir a respeito de sua vida de homem da natureza. Pra ele não havia correria. Se quisesse comer, subia no coqueiro, pescava, colhia de sua horta plantada a beira da restinga, no quintal de sua casa. Que maravilha a vida dele: não tinha hora pra acordar e nem dormir; não tinha contas a pagar, pois luz não tinha e suas necessidades ele fazia na floresta que ficava á frente de sua casa. É, ele vivia entra a praia e a floresta. Talheres e pratos, não os tinha. A única coisa que tinha era uma travessa de madeira herdada de um amigo. Fazer fogo? Fácil, pegava um pouco de lenha da floresta, e com outro pedaço de pau esfregava, causando um atrito entre as partes até que começasse a dádiva labarenta e quente que Deus nos deus.
Quando quisesse saber das notícias, ia até o quiosque do amigo e via televisão, pois o amigo tinha luz elétrica no lugar, conseguida através de uma manobra de puxa fio daqui e dali e extensão e pronto: mas um felino feito. Ele não! Não queria burlar a lei com isso, preferia viver como um eremita, ou quase um eremita. Só cortava os poucos cabelos quando alguém o forçava e o colocava aos caprichos dos pentes e tesoura, pois sempre teve poucos pelos, era bastante calvo sim.
Tinha a vida que pediu a Deus, sem muitas responsabilidades, vivendo ao sabor de sua própria força e de seu trabalho pra comer e beber. Tinha em mente que não precisava adoecer de trabalho, pois Deus o proveria de alguma forma. Doente nunca havia ficado, somente um resfriado aqui e outro ali que eram sempre cuidados com guaco, agrião e mel. Não se preocupava muito com a idade, que já beirava os 30 anos, apesar de parecer ter muito mais , por causa do castigo do Sol diário.
Mas paradoxalmente, achava que não tinha que seguir uma rotina, no entanto, há uma rotina diária sim: acordar, ir ao mato (pra fazer as necessidades), escovar os dentes com folhas de goiabeira, subir no coqueiro pra pegar o café da manhã, pescar, colher as hortaliças do almoço, lava-las no mar, fazer fogueira, e depois deitar e pensar na natureza. É uma rotina ou não é? É um trabalho ou não é?
Nosso amigo, era bem parecido com o personagem do Tom Hanks em o náufrago, só não tinha um amigo bola de nome Wilson, mas o amigo do quiosque se chamava Dílson, coincidência ou não, pelo menos valeu minha citação, ao talentoso ator de Hollywood.
Num dia qualquer adormeceu na praia e ficou com insolação. Desmaiou! Começou a ter uma “viagem" de ser um homem de negócios, que morava sozinho e tinha que acordar todos os dias pra trabalhar e sempre acordava atrasado e tinha que fazer tudo rápido por causa do famigerado tempo (ai que coisa, o tempo. O que é o tempo? Eita coisa criada pelos humanos). Trabalhava numa agência de publicidade e ganhava muito bem. Usava terno Armani, camisas de grife e sapato italiano Viajava. Tinha amigos e amigas. Várias mulheres. Festas. Badalação. Prêmios. Jantares e tudo o que o capitalismo consumista o poderia dar a partir, claro, de alguns tostões.
Passadas as viagens, vida normal. Cada um na sua. Quem é real? Quem é quem? Ninguém sabe, só sei que o cosmopolita queria ser eremita e o eremita ser cosmopolita.

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